Todas as denúncias chegaram ao conhecimento do Me Too Brasil, organização sem fins lucrativos que oferece assistência jurídica gratuita a vítimas de violência sexual. Três mulheres procuraram diretamente a ONG para formalizar e levar à frente as denúncias contra Scalercio.
Ele é juiz substituto do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região e professor de direito material e processual do trabalho no Damásio Educacional.
O Me Too Brasil, então, levou as queixas ao Conselho Nacional do Ministério Público, que depois acionou os órgãos competentes. Atualmente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em Brasília, e o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), em São Paulo, apuram essas três acusações contra o juiz, respectivamente, nas esferas administrativa e criminal (saiba mais abaixo).
Dez mulheres
O g1 teve acesso às dez denúncias contra o magistrado feitas pelas mulheres. Os relatos foram divulgados inicialmente nas redes sociais, e só depois chegaram ao Me Too Brasil.
As denunciantes, que não querem ser identificadas por temerem represálias, são: uma funcionária do TRT, uma advogada, uma estagiária de direito, seis alunas do cursinho Damásio à época, e uma professora de direito - com quem a reportagem conversou.
Algumas das mulheres postaram e compartilharam prints das conversas que alegam ter tido com ele e que, segundo elas, comprovam os assédios sexuais cometidos por Scalercio (veja mais abaixo). As fotos dos diálogos foram divulgadas em grupos fechados de concursos públicos voltados a mulheres, compartilhadas entre as próprias vítimas e também acabaram encaminhadas ao Me Too Brasil.
Das dez mulheres, três delas acusam o magistrado de 41 anos de agarrá-las e beijá-las à força dentro do seu gabinete no Fórum Trabalhista Ruy Barbosa, na Barra Funda, Zona Oeste da capital, ou em uma cafeteria próxima ao cursinho, no Centro.
Outras sete vítimas também relatam que ele usou as redes sociais para assediá-las, tendo comportamento inapropriado e enviando mensagens com conotação sexual.
Assédio sexual é crime no Brasil. Pode ocorrer em um contexto em que há relação hierárquica entre o agressor e a vítima, no qual ele a constrange, geralmente no ambiente de trabalho, seja usando palavras ou cometendo ações de cunho sexual, sempre sem o consentimento da pessoa, como um beijo ou um toque forçados, por exemplo.
As denúncias de assédio contra o juiz começaram em 2014, mas só começaram a ser discutidas entre as vítimas em 2020. Primeiro pela internet, quando vítimas que não se conheciam começaram a citar o nome de Scalercio em pelo menos dois grupos fechados de discussão voltados a concursos públicos para mulheres. Elas o definiam como assediador sexual.
Em um desses grupos, a organizadora pedia às concurseiras que a seguiam que enviassem as postagens que haviam feito anteriormente com denúncias contra o magistrado.
Ao descobrirem que outras mulheres denunciaram o juiz por assédio, três das vítimas que procuraram o Me Too Brasil decidiram dar sequência às denúncias. As queixas seguiram então para os órgãos competentes apurarem.
O Me Too Brasil, ou o "Eu Também" (na tradução do inglês), foi criado em 2020 no país, inspirado pelo movimento que nasceu nos Estados Unidos em 2017, depois de uma série de denúncias contra o produtor Harvey Weinstein, acusado por dezenas de mulheres de abuso sexual e estupro. Desde então, a ONG combate assédio e abuso sexual prestando assessoria jurídica gratuita a mulheres por meio de profissionais voluntários.
A organização levou as acusações das três mulheres contra o juiz para o Projeto Justiceiras e a Ouvidoria das Mulheres do Ministério Público, em Brasília, com os quais tem parceria. A Ouvidoria acionou depois as autoridades responsáveis para que as denúncias fossem investigadas.
Pelo fato de os membros da Justiça do Trabalho terem competência federal nas suas atribuições, eventuais violações cometidas por eles são apuradas por órgãos federais. Se for considerado culpado no âmbito administrativo, o magistrado poderá ser exonerado do cargo, suspenso, afastado ou advertido. No aspecto criminal, condenados por assédio sexual podem ser punidos com até dois anos de prisão.
O que dizem o juiz e sua defesa
O g1 procurou a defesa de Scalercio para comentar o assunto, mas o advogado Fernando Capano, que o defende, informou que ele e seu cliente não iriam comentar o assunto por enquanto.
"No caso em apreço, não iremos nos manifestar neste momento", afirmou Capano.
A reportagem apurou que a defesa de Scalercio negou todas as acusações na Justiça e continua trabalhando como juiz e ainda é professor.
O que diz o Damásio
O Damásio Educacional é um tradicional cursinho preparatório para concursos públicos em São Paulo.
O cursinho Damásio também foi procurado pelo g1 para comentar o assunto e informou, por meio de nota divulgada por sua assessoria de imprensa, que não recebeu denúncias de assédio sexual contra o professor que tenham sido feitas por alunas do curso, mas que se coloca à disposição para apurar "eventuais desvios de conduta".
“A Instituição esclarece que atua na promoção de um ambiente acadêmico respeitoso e que não identificou manifestação de estudantes sobre este caso. Para questões desta natureza, a instituição disponibiliza um canal oficial, que se destina a apurar eventuais desvios de condutas", informa comunicado do Damásio.
Funcionária do TRT
Uma funcionária do Tribunal Regional do Trabalho contou em depoimento à Corregedoria do TRT que o juiz a agarrou e beijou à força dentro do gabinete dele, no Fórum Trabalhista Ruy Barbosa em São Paulo, em 2018. Esta é uma das três denúncias contra Scalercio que são apuradas pelo CNJ e pelo Ministério Público Federal (MPF).
A servidora do Tribunal Regional do Trabalho, que não era subordinada diretamente ao juiz, falou que o assédio ocorreu após ela perguntar a ele sobre possibilidades de trabalho durante um evento no prédio do fórum. O local é uma das unidades do tribunal na cidade de São Paulo.
O magistrado então a convidou para ir à sala de trabalho dele dentro do fórum e lhe enviou mensagens por WhatsApp, segundo relato da funcionária.
“Quando chegou no gabinete, o doutor Marcos [Scalercio] levantou e segurou os [meus] dois braços. Colocou força nos dois braços e começou a [me] beijar”, contou a servidora do TRT.
A funcionária ainda relatou que o magistrado a "encoxou" dentro da sala: “Doutor Marcos não parou. Veio e pegou na linha da [minha] cintura por três vezes”.
A servidora afirmou que o juiz lhe disse: "Sei que você quer". Assustada, ela falou que tentou se livrar do magistrado e chegou a colocar a mão no rosto dele e o empurrou.
Ainda segundo a mulher, Scalercio “começou a falar que era juiz, que tinha um monte de mulheres que queriam sair com ele”.
Como o gabinete não tinha câmeras e não havia mais ninguém na sala de audiência além dos dois, ela contou que tentou pegar o celular para filmá-lo, mas ele não a deixou registrar o assédio: tirou o telefone dela e o colocou sobre a mesa.
A funcionária relatou que o juiz disse que ela “não poderia fazer nada” contra ele. Em seguida, a mulher saiu da sala de audiência e voltou para o seminário.
Nervosa, ela decidiu ir embora. No dia seguinte, contou a uma amiga o que aconteceu. Dez dias depois, resolveu mandar mensagem para o juiz dizendo que “houve falta de respeito, que não deu abertura” para ele abordá-la daquele jeito.
O magistrado então “respondeu que não sabia sobre o que ela estava falando”, de acordo com a funcionária.
Na época, ela não o denunciou porque acreditava que “não tinha provas” contra ele, exceto suas próprias palavras. Mas mudou de opinião quando viu outras mulheres acusando o magistrado por assédio sexual nas redes sociais. Procurou então o Me Too Brasil para formalizar sua denúncia contra Scalercio.
Desde então, ela aguarda decisões do Conselho Nacional de Justiça e do Ministério Público Federal. Atualmente faz terapia e tem acompanhamento psicológico por conta do trauma que sofreu, segundo a ONG.
Estagiária de direito
Uma estudante de direito que fazia estágio no Fórum Trabalhista Ruy Mendes, em São Paulo, em 2019 contou em depoimento ao Me Too Brasil que à época foi assediada pelo juiz também no gabinete dele.
A mulher disse que tinha ido ao local pegar a assinatura de Scalercio após as audiências dele para cumprir a grade curricular exigida pela universidade. De acordo com a estudante, depois que entrou na sala, o juiz trancou a porta.
“Eu entrei na sala e fiquei de costas para a porta, pois estava debruçada na mesa para retirar meus relatórios da pasta para a assinatura. E por essa razão não vi que ele havia trancado a porta do gabinete. Ele me agarrou sem meu consentimento e por repetidas vezes tentou me beijar”, falou a estagiária.
A mulher ainda contou que pediu para o magistrado parar de agarrá-la, mas ele continuou. “Eu falava em alto e bom tom que não queria e que era para ele parar”, relatou. “Tentei juntar todas as minhas peças [relatórios] que estavam em cima da mesa para sair, e ele não deixava, pois ficava insistentemente me agarrando.”
A vítima afirmou que escapou do juiz após alguns minutos, quando conseguiu sair da sala. “Em seguida, ele me enviou mensagem dizendo para marcarmos outro dia, pois ele queria me ver.”
A estagiária disse que respondeu a mensagem do magistrado perguntando se ele não tinha "medo" por tê-la assediado no gabinete dele. Mas, segundo ela, Scalercio falou que ninguém acreditaria nela se contasse o que ocorreu lá dentro.
“Eu o questionei se ele não tinha medo de criar essa situação dentro do próprio gabinete. Ele disse que ninguém acreditaria, caso eu contasse”, disse a aluna.
Apesar de ter feito a denúncia acima ao Me Too Brasil após ter conhecimento de outras acusações contra ele nas redes sociais, a ex-estudante não deu sequência à queixa, com receio de represálias.
Alunas do Damásio
Uma então universitária de direito e aluna do Damásio à época também procurou o Me Too Brasil para denunciar o magistrado por tê-la agarrado e tentado beijá-la contra a sua vontade. Segundo ela contou em depoimento à Corregedoria do TRT, o assédio ocorreu em 2014 numa cafeteria no Centro da capital, perto da faculdade em que estudava.
De acordo com a vítima, o professor foi atrás dela oferecendo ajuda com livros e a convidou para um café, onde a beijou sem o seu consentimento. A mulher decidiu fazer a denúncia ao Me Too Brasil ao saber de outros relatos de vítimas de assédio do juiz. Este caso também chegou ao conhecimento do CNJ e teria sido levado ao MPF.
Uma outra ex-estudante do cursinho Damásio procurou o Me Too para acusar o juiz, de quem era aluna, de ter usado as redes sociais dele na internet para assediá-la em 2014. Como as aulas eram a distância, ela contou que adicionou Scalercio no Facebook para tirar uma dúvida. Depois, segundo relatou, ele começou a puxar papo, fazendo "cantadas baratas" e pedindo foto dela de "calcinha".
Ainda de acordo com a vítima, o professor ofereceu revisão da prova via Skype e, quando ela abriu a câmera, viu que ele estava nu e se masturbando. Ela disse que desligou o vídeo logo em seguida. Com medo, a vítima não quis que a denúncia fosse encaminhada às autoridades. Segue abaixo um trecho da troca de mensagens dela com outra pessoa comentando o assédio e que chegou a ONG.
Outras três mulheres que também eram alunas do Damásio chegaram a enviar mensagens para um grupo fechado de concurseiras na internet que perguntava quem já havia sofrido assédio de Scalercio, segundo o Me Too Brasil. Elas haviam respondido que sim ou contado as investidas não consentidas do professor.
"Eu já sofri. Depois que eu não quis ficar com ele. Começou a falar mal de mim para todos os professores. Ele vai chegando dizendo que quer ajudar mas é tudo mentira. Conheço várias meninas que passaram por isso", relatou uma ex--aluna dele.
"É o Márcio [Marcos] Scalercio né, tenho certeza. Uma vez fui tirar dúvida sobre uma aula e ele me perguntou se eu gostava de beijar na boca (?)", comentou outra mulher em mensagem.
"Aaaaah é o Scalercio. Certezaaaaaaaaaaaaaaa. Famosão demais! Depois de falar várias vezes que não iria sair com ele, me bloqueou das redes sociais e não olhava mais na minha cara nos corredores do Damásio! É um padrão", escreveu outra ex-aluna do cursinho.
O print de uma conversa por WhatsApp de 2017, atribuída a Scalercio e a uma outra aluna, mostra que ela teria sido assediada pelo magistrado pela rede social, de acordo com o Me Too Brasil. A imagem foi divulgada num grupo de discussão de concurseiras com o título "Esse é o nível da conversa". Ela seguiu depois para a ONG:
"Vc consegue gozar já nessa etapa?", teria escrito o juiz para a mulher, que respondeu, entre outras coisas: "Fiquei constrangida. Afinal, eu ainda nem te conheço pessoalmente. E peço desculpas se passei a impressão errada".
Em seguida, segundo a denúncia, ele respondeu: "Uma pena q cortou".
Em outras mensagens de conversas nas redes sociais que chegaram ao Me Too Brasil, mulheres contaram que é preciso denunciar Scalercio para que ele pare de assediá-las. "Enquanto ninguém expuser as atitudes dele, ele vai continuar fazendo e fazendo e fazendo...", escreveu uma delas.
Outra lamentou o fato de o professor continuar dando aulas sem que a direção do cursinho o repreendesse: "O pior é o Curso Damásio, que as alunas reclamam do assédio e eles são sempre contra as alunas".