À beira de um colapso, cemitérios públicos de Maceió estão enterrando os seus mortos em covas rasas, nas ruazinhas estreitas entre os túmulos e jazigos. Das 1.065 pessoas enterradas em 2023 nos oito cemitérios administrados pela prefeitura da capital alagoana, 861 foram sepultadas de forma precária diretamente na terra. Ou seja, 8 em cada 10 mortos não tiveram um enterro digno.
Durante quase dois meses, a Agência Tatu entrevistou mais de uma dezena de fontes, levantou e analisou dados públicos nem sempre acessíveis e fez incursões nos cemitérios e adjacências para entender a extensão dos impactos dessa crise no sistema funerário. Uma crise há muito conhecida pelas autoridades municipais. Esta reportagem começa com a história daqueles que mais sofrem.
Para além da dor de perder um ente querido, buscar enterrá-lo e não conseguir um lugar digno, ou ter de esperar dias para fazê-lo, está se tornando comum para a população que depende do serviço público funerário na capital. É de se imaginar, portanto, o tamanho da revolta e indignação das famílias.
São muitos os relatos de pessoas que aguardaram até quatro dias para conseguir um local para enterrar os seus familiares em um dos oito cemitérios administrados pela Prefeitura de Maceió. Depois de uma longa e angustiante espera, por fim elas têm de ver o seu ente baixado a uma reles cova rasa.
Esse é o caso da Débora Tenório Cavalcante, viúva de Ery Feitosa, que faleceu no dia 23 de abril deste ano, mas só foi enterrado no dia 26, somando quase quatro dias de espera por uma vaga. O sufoco não era esperado pela família, que possuía jazigo no Cemitério Santo Antônio, interditado em outubro de 2020.
“Foi muito ruim a gente ter que esperar mais tempo do que o devido para poder fazer [o enterro] sem um pingo de respeito. A irmã dele foi lá [na Central Única de Sepultamentos] e não conseguiu vaga, ficavam jogando para lá e pra cá. E tudo pra conseguir uma vaga no [cemitério] São José, numa cova rasa, rasíssima, que não dava nem para fazer aquele ‘montinho’ de terra. Uma coisa muito constrangedora para a família”, relata a viúva.
O cemitério Santo Antônio fica localizado no Bebedouro, um dos quatro bairros que tiveram de ter quase todos os cerca de 60 mil moradores removidos de suas residências devido ao afundamento de solo causado pela empresa petroquímica Braskem. A empresa trabalhava havia mais de 40 anos com a extração de salgema no solo abaixo desses bairros.
Com a desapropriação, o Cemitério Santo Antônio foi interditado para sepultamentos em 2020, sendo apenas liberado para visitação um ano depois. As famílias que possuíam jazigos no local se encontram desamparadas e tiveram de buscar outros cemitérios da capital, aguardando dias para enterrar os entes queridos em covas rasas e distante dos familiares que estão em jazigos.
“A situação de todos que moraram ali [no Bebedouro], todos muito carentes, é que muitos não tinham condição de pagar um plano funerário. Então, vai falecendo e vai quebrando a cabeça para enterrar. Se não tiver uma amizade, sabe como é. Se tiver um plano funerário, enterra no Parque das Flores, o que é muito raro, mas se não tiver, o ‘aperreio’ é esse aí. O cemitério público já está escasso. Não tem condições de sepultar mais ninguém, principalmente o São José”, conta Jackson Douglas, ex-morador do Bebedouro que faz parte do Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB).
Outro caso que causou revolta e indignação entre os familiares foi o de Maria de Lourdes, ex-moradora do Bebedouro. Ela morreu aos 78 anos e a família possuía jazigo no cemitério Santo Antônio, mas não pôde usá-lo, tendo de sepultá-la em cova rasa no Cemitério São José, o maior da capital.
Segundo Aline Karine, neta da Dona Lourdes, a avó foi adoecendo ainda mais devido às preocupações com a espera pela indenização da Braskem. “Ela já tinha diabete e acabou tendo que amputar uma perna por isso, mas era muita preocupação por [esperar] esse dinheiro da Braskem, porque ela queria comprar a casa dela, e acabou falecendo no primeiro AVC que ela teve”, disse Aline.
A Agência Tatu teve conhecimento de outros casos de ex-moradores do Bebedouro que passaram pela agonia de ter que esperar dias para sepultar parentes, mesmo possuindo jazigo no Cemitério Santo Antônio. Entretanto, muitos decidiram não conversar com a reportagem por receio de sofrer alguma represália da Braskem, no sentido de dificultar o recebimento da indenização que ainda aguardam.
Segundo o atual coordenador geral de Gestão de Serviços Funerários (CGGSF) de Maceió, Tarcísio Palmeira, havia uma expectativa de que surgissem novas vagas referentes aos sepultamentos ocorridos em 2020 por vítimas de Covid-19. Entretanto, é preciso analisar cova por cova para verificar se o corpo já teve sua completa decomposição.
“Pela lei, a gente só pode abrir uma cova a partir de três anos de sepultamento, e agora estão começando a abrir as covas de Covid. Como nas covas de Covid as pessoas foram sepultadas dentro de sacos, acontece que o saco demora mais para se degradar. Então, a gente tem que fazer uma prorrogação de mais um ano para ver como vai ficar. Porque essas pessoas que foram sepultadas por Covid ainda estão em processo de decomposição. A gente vai abrindo na medida em que vai vencendo os casos”, explica Palmeira.
A iminência de um colapso nos cemitérios de Maceió é de conhecimento da prefeitura. Ex-coordenador geral de Gestão de Serviços Funerários (CGGSF) da capital, Chrystiano Lyra fez o alerta e chamou atenção para o caso do cemitério no bairro Bebedouro em memorando protocolado em 17 de fevereiro de 2023. A Agência Tatu teve acesso ao documento.
O memorando relata a urgência na construção de um novo cemitério e ampliação do cemitério São Luiz, sob risco de colapso na rede funerária da capital. Doze dias após a data do documento, Lyra foi exonerado do cargo comissionado que ocupava.
Segundo Lyra, o documento foi enviado ao gabinete da antiga Superintendência Municipal de Desenvolvimento Sustentável (Sudes), atual Autarquia de Desenvolvimento Sustentável e Limpeza Urbana (Alurb), com o objetivo de ser enviada cópia à Secretaria Municipal de Governo (SMG) e à Secretaria Municipal de Gestão.
“No meu último memorando, deixei muito claro que Maceió não conseguia suportar mais e a situação funerária iria travar. Eu sabia que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Fiz um levantamento e passei para a Braskem e para o GGI dos Bairros, mostrando que em dois anos 26% dos sepultamentos [que era do cemitério Santo Antônio] precisaram ser realocados. É muita coisa”, relata Chrystiano.
A Agência Tatu questionou a atual coordenação dos serviços funerários sobre as informações do memorando, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Conseguir dados sobre os cemitérios públicos de Maceió não é tarefa fácil. Isto porque, segundo relatos, muitas informações básicas, como número de sepultamentos, começaram a ser coletadas e registradas de forma digital apenas no início da última gestão da CGGSF, em 2021. Antes disso, muitos dados só existiam em papel, sendo necessário um levantamento nos arquivos de anos anteriores, serviço que a administração pública não se mostrou disposta a fazer.
No cemitério Santo Antônio, um trabalhador do local contou à Agência Tatu que é comum ocorrer a perda de documentos. “A coordenação em si mudou de local algumas vezes desde o fechamento [do cemitério Santo Antônio], aí sempre que tem mudança de local acaba perdendo documento, né. Como foi feito físico, lembro que não foi feito nada digital, pode ser que tenha perdido”, informou o funcionário, que prefere não ser identificado por meio de represálias.
Mesmo diante de tantas dificuldades, a Agência Tatu conseguiu obter alguns dados junto à assessoria de comunicação da Alurb e de outras fontes consultadas. Confira abaixo:
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), houve um acordo entre a Prefeitura de Maceió e a Braskem para o aumento da área do Cemitério São Luiz, localizado no bairro Santa Amélia, cujo custo seria pago pela Braskem como indenização. O processo de desapropriação do terreno estaria em vias de finalização, aguardando as formalidades legais exigidas.
À reportagem, o ex-coordenador da CGGSF Chrystiano Lyra relatou que a ampliação no cemitério São Luiz vinha ocorrendo num ritmo frequente durante a sua gestão, mas no período próximo de sua saída da pasta os trabalhos foram diminuindo, não havendo a renovação de contratos dos trabalhadores da obra.
“Nós tínhamos contratações de alguns pedreiros e pintores, por exemplo, que contratamos como MEI, e todos os dias eles estavam no cemitério, todos os dias construindo um pouquinho. Eram cerca de 10 pessoas envolvidas nessa construção, para deixar tudo pronto. Infelizmente, o contrato das pessoas acabou perto de eu sair, e não foi renovado até hoje. Acham que vão conseguir solucionar o problema só com as covas rasas. Eu acho muito desumano”, diz Lyra.
A Agência Tatu visitou o cemitério São Luiz no dia 23 de maio e foi possível observar uma construção incompleta de gavetas municipais. Entretanto, não encontrou trabalhadores no local, ou em área próxima que serviria para ampliação do cemitério, como é possível verificar nas imagens abaixo. Não há qualquer sinal de obras em andamento.
Quanto à construção de um novo cemitério, existe um Acordo Global que está em negociação entre a Prefeitura de Maceió e a Braskem. Mas não foi informado se existe qualquer previsão para a efetiva construção de um novo cemitério público em Maceió.
A Coordenação de Serviços Funerários também foi questionada sobre a ampliação do cemitério São Luiz e o porquê de a obra estar parada, mas a Agência Tatu não obteve retorno. Quanto ao acordo global sobre a construção de um novo cemitério, o GGI dos Bairros (Gabinete de Gestão Integrada para a Adoção de Medidas de Enfrentamento aos Impactos do Afundamento dos Bairros), órgão da Prefeitura, também não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Os ex-moradores da região desapropriada aguardam uma solução causada pela interdição do Cemitério Santo Antônio, que termina afetando toda a população maceioense que depende do serviço público funerário.
Em 9 de maio, o Ministério Público Federal (MPF), a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público do Estado de Alagoas (MP/AL) expediram conjuntamente ofícios ao Município de Maceió, através do GGI dos Bairros, e à Braskem, requisitando informações sobre a situação do cemitério Santo Antônio, fechado por causa do afundamento do solo que afeta a localidade.
À Agência Tatu, o MPF afirmou que as informações solicitadas ainda não foram recebidas pelas instituições. “Foram feitos questionamentos oficiais a respeito desse assunto, mas ainda aguardamos as respostas necessárias para obter uma visão mais clara do progresso dessas medidas”, o órgão informou em nota.
O MPF também esclareceu que o caso do cemitério Santo Antônio se enquadra na categoria de grandes equipamentos e, portanto, não está inserido no âmbito do acordo de indenizações estabelecido entre as três instituições públicas e a empresa Braskem, que regula o Programa de Compensação Financeira (PCF) às pessoas prejudicadas.
“Por essa razão, a situação do Cemitério Santo Antônio está sendo tratada por meio de negociação direta entre o Município de Maceió e a empresa, sem a intervenção das instituições mencionadas”, disse o MPF em nota.